quinta-feira, 5 de abril de 2012

De repente congelando na Paraíba...


No primeiro dia da virada de ano em Olinda, e depois de uma incrível festa de reveillon na Casa de Hilton, com direito a roda de cirando, côco, forró, e excelente companhia, minha amiga francesa bate na janela do meu quarto ainda de manhã: “Vamos pra Tambaba”? Se quiser, tem que ser agora...
Eu não demorei um segundo pra responder, foi só o tempo de perguntar “como?”.
 Ir pra Tambaba no dia primeiro do ano, era um projeto “antigo”, mas que já havíamos descartado devido a impossibilidade financeira e também ao transtorno de se chegar ao local via ônibus. Mas ela estava me comunicando que dois amigos nossos estavam ali em frente à pousada, de carro, nos oferecendo carona e toda a alimentação que eles já haviam (supostamente) providenciado. Eu não tive dúvidas, era o que mais queria!
Tambaba é uma praia de nudismo na Paraíba. Eu já havia tido a experiência de conhecer uma praia de nudismo em Santa Catarina- a praia do Pinho- por isso queria muito conhecer Tambaba, pois a experiência de banhar-se nu no mar, e também de estar em contato com a natureza da “forma que viemos ao mundo”, é algo muito especial. Imaginei que nas praias do Nordeste seria ainda melhor! Seria uma excelente forma de iniciar o ano!
Nem precisei pegar biquíni (que momento!), só entrei no carro com meu corpinho, meu vestidinho, uma toalha e uma canga. Iríamos voltar de noite, e seriam umas 2 horas de viagem.
Bom, esses dois amigos que falei, na real ainda não eram muito amigos, mas tínhamos deles, boas referências e informações (de fonte segura) de que eram “inofensivos”. Eram figuras que cresceram aqui em Olinda, então eram conhecidos de todos. Mas de fato eram “figuras”. Um era um enorme negão capoeirista, que agora morava em Paris, e o outro uma figura delgada e cabeluda, tanto de barba quanto de cabelo (vou chamar-lhe aqui de “Profeta”). Esse trabalhava na polícia, nos setor dos “presuntos”. Durante toda a viagem, Profeta deve ter falado duas frases, enquanto que o Capoeirista falava por nós quatro, com expressões vivas nos olhos, risadas histéricas e um tanto solitárias. O seu estilo e personalidade lembrava muito ao do famoso “Ban-Ban”, vencedor do primeiro Big Brother Brasil. Espalhafatoso mas de bom coração. Já o outro não há como se comparar a ninguém... realmente peculiar.
Partimos numa viagem de uma sensação térmica de uns 50 graus dentro do carro. Profeta vestia uma camisa preta, com um colete também preto de polícia, calças compridas, um par de meias e coturnos. Eu e minha amiga no banco de trás do carro, não conseguíamos entender a escolha deste figurino, dadas às condições climáticas...  Que tirasse o colete e-/ou as botas e já estaria melhor, mas não... permanecia em sofrimento.  Eu e ela dávamos muita risada desta situação intrigante.
Na metade do caminho, que na real já era mais que o dobro do que deveria ser (devido à precariedade do motor do carro), os meninos pararam numa venda para que escolhêssemos o que comprar para (supostamente) complementar a comida que levavam. Eu e minha amiga decidimos compramos então comprar um pão. Na real era a única coisa que havia na venda que não necessitasse de isopor. Há sim, eu também estava levando manga da casa de Hilton, pois como já relatei, lá as mangas despencam a todo instante.
Já quase no final do dia chegamos à praia. Foi um momento meio esquisito passar pelo tal “portal” que separa a praia “normal” da praia dos nudistas. Foi o mesmo portal que fez com que tivéssemos que,  instantaneamente, encarar com naturalidade a nudez daquela “dupla” e nossa própria nudez frente à eles.
Novamente eu a minha amiga francesa ríamos muito, mas discretamente... e falávamos entre nós : “Só a gente mesmo.., só a gente...”
Da outra vez que fui a praia de nudismo em Santa Catarina, foram só eu e minha grande  amiga, então não tive que passar por essa situação.
O sol estava baixando, então aproveitei para ainda tomar um banho de mar... Ao entrar na água, fui sentindo coisas estranhas... mas não adiantava fugir... Tive  a triste constatação que o mar dali era repleto de algas... algas meio secas (menos mal). Minha vontade de estar no mar era tanta, que tive de me concentrar neste desejo para abstrair um pouco a sensação de estar enredada. Achei que aquelas plantas sairiam envoltas e enroscadas em meus pêlos pubianos. Bom, ainda assim, estava em vantagem, pois nadar no mar pelada é muito bom e a paisagem daquela praia era belíssima, cheia de rochedos e de uma linda vegetação.
Como o sol já tinha se posto, imaginei que não restava muito mais o que fazer ali, senão esperar o nosso retorno, que deveria se dar em algumas horas, conforme o planejado. Além do que a temperatura dava os primeiros sinais de esfriamento.
Quando se aproximava o momento da partida, os meninos vieram nos dizer que o carro do Profeta estava com pouca gasolina, e que por isso era um risco voltar ainda de noite. Perguntaram se tudo bem a gente dormir ali e esperar o dia amanhecer. Essa constatação, não nos deixava outra alternativa, senão consentir..., até porque estávamos de carona.
Mas quase no mesmo momento que consenti fiquei pensando: “sim, mas dormir aonde”?
Algumas pessoas estavam acampadas ali na praia dormindo em barracas, mas nós não tínhamos nenhuma e também não tínhamos como ficar na única hospedagem que tinha ali.
Os meninos supostamente como solução a mesma pergunta que devem ter se feito, trouxeram do carro do Profeta (que na real estava bem distante de onde estávamos) - uma rede.
Eu permaneci com a mesma inquietação, mas eles estenderam a rede na areia, considerando o problema solucionado. Só para recordar éramos quatro pessoas, e havia uma rede de tamanho normal estendida no chão.
Nestas alturas estava mesmo muito frio, e havia muito, muito vento. Eu estava só com aquele mesmo corpinho que entrou no carro, o vestidinho, a toalha (agora meio molhada) e uma canga pequena. Também já havíamos quebrado a regra da praia da obrigatoriedade da nudez. Eu, o capoeirista e minha amiga vestimos nossas roupas. Já Profeta permaneceu pelado, mesmo no frio. Quer dizer, ele mantinha apenas sua pochete, literalmente. Isso ele não havia tirado em nenhum momento. Seu comportamento para com as temperaturas continuava nos sendo intrigante, no mínimo. Ele era o que mais podia se aquecer, tendo vista a quantidade de roupas que tinha à disposição, mas não... permanecia em sofrimento.
Esqueci de relatar que a alimentação que os meninos tinham levado era uma lata de sardinha e uns dois pedacinhos de bolo que restaram do ano novo da família do capoeirista. Mal pudemos sentir o gosto. Sendo assim, quando caiu a noite, já estávamos famintas.
A situação era patética: tivemos que ir comendo aos pedacinhos o pão que compramos, para economizar até o outro dia. Diga-se de passagem, também que aquele pão estava velho. Economizávamos também com uma garrafinha d’água de 500 ml. Lembrei-me com alegria da manga que havia trazido! Descasquei o fruto escorregadio sob a areia... o que já premeditava o destino trágico: um mamão a milanesa!  Estava me sentindo uma mendiga, ou atuando no filme “O Náufrago”, e mais uma vez isso me fez rir muito. Mas com o passar das horas minha risada fora se esvaindo... O frio aumentava. O carro estava muito distante, e era muito escuro para chegar até lá. Eu queria rapidamente me aquecer, então não tive outra alternativa senão deitar naquela rede ( e tentar me cobrir com ela mesmo). Eu ficava a pensar: se eu não me gripar e ficar doente com esse episódio, é porque estou mesmo muito forte. Ali na rede já estava Profeta. E foi assim, olhando nu para o céu que ele falou uma de suas duas frases, com um sotaque carregado e empregnado de pausas: -“ Eu pricisu ixtudá... aix cónxtélaçõex”...
Eu a essas alturas estava dando graças a Deus te ter trazido uma pequena canga, apesar dela não servir pra quase nada, pois era fina e não cobria todo meu corpo. Portanto, eu tinha que escolher entre tapar minhas pernas ou tapar o meu peito. Por enquanto só tínhamos deitado eu e Profeta, e como eu havia me enroscado como um croquete com a ponta da rede que sobrava para me cobrir do frio, eu era obrigada a ficar mais próxima dele.
Foi um forte momento de estranhamento, olhar para aquela criatura estranha e nua do meu lado, me ver naquela praia, naquele cenário, no dia primeiro do ano e naquela situação... eu não sabia direito como tudo aquilo havia acontecido, mas eu estava de repente ali, congelando na Paraíba... São aqueles breves e raros momentos da vida que tomamos um profundo distanciamento e ao mesmo tempo reconhecimento da situação. Desta forma eu me dava conta da incrível dinamicidade do mundo e da forte disposição que tenho para aventurar-me. Não era a primeira vez que de repente me dava conta de situações surrealistas nas quais de repente eu me encontrava. Mas não era aquilo que me incomodava...
O que me incomodava mesmo era o frio...  Pela primeira vez acho que senti na pele o que as pessoas que vivem na rua devem passar. Eu desejava profundamente que o dia chegasse, que o sol aparecesse. Eu tinha que me cobrir com a rede de uma forma que não mexesse na toalha e na canga que estavam me tapando, pois qualquer pedacinho de corpo sem pano, fazia a diferença. Mas outro detalhe sórdido é que cada vez que eu tentava me enroscar mais na rede, puxando a ponta do tecido, eu trazia junto com ela grande quantidade de areia pro meu corpo, incluindo minha cabeça, que estava praticamente direto na areia. Assim, eu começava a sentir areia na cabeça, e também mosquitos na minha perna. Só que cada vez que ia me coçar, eu desarrumava tudo o que havia construído com todo esforço, então novamente congelava. Assim, durante quase toda a madrugada eu fui desenvolvendo estratégias para tentar me coçar, quase sem me mover. Eu tinha que tirar as mãos debaixo das “cobertas” de forma que ficassem muito rentes ao corpo e com movimentos muito, muito lentos, e delicados, quase que imperceptíveis.
 Foram longas horas nesse processo... e incontáveis as vezes que executei esse momento, até que por alguns instantes, consegui atingir uma relativa  paz e adormecer. Mas nisso, sinto o beliscar de um caranguejo no meu tornozelo! Levanto num (sobressalto), desfazendo em segundos todo o meu trabalho de horas. Mas não vi caranguejo nenhum, e sim a mão do Profeta. Imaginei que ele estava sonhando e tendo tremilicos. Assim, relaxei e voltei a me acomodar, com grande dificuldade. Depois de muito tempo quando já estava quase encontrando uma relativa paz novamente, sinto novamente aquela mesma espécie de beliscar desritmado no tornozelo. Mas desta vez não houve dúvidas: era Profeta e não era sonho dele. Tratava-se, na realidade de uma investida de muita, muita inabilidade.
Deixei clara a minha insatisfação e me levantei de súbito. Mas o frio era intenso. Não sabia dos outros amigos, eu havia adormecido muito antes deles. Mas supus que haviam (não sei como) ido até o carro para dormir. Era impossível ficar mais de 2 segundos sem me cobrir, então era obrigada a deitar-me na rede de novo.
E assim, foi mais uma saga para conseguir adormecer de novo. Profeta “sossegou o facho”, e graças à Deus  o sol começou a despontar em seu primeiro fecho de luz.
Fui a primeira pessoa a despertar naquela praia, e assim, com uma grande satisfação e gratidão pelo calor do sol, saí para caminhar. Atravessei umas falésias que levam a outra enseada de mar. Eu estava completamente sozinha naquela praia e naquela natureza exuberante. Voltei a ficar nua e sentir o sol na minha pele. A praia era minha, só minha! Senti que aqueles momentos compensaram a terrível noite que passei. Era o início de 2012 e não é sempre que se tem a oportunidade de iniciar o ano assim!
Há sim, outro momento especial que passei, para não dizer que foram tão poucos, foi quando eu e minha amiga, ainda naquela noite (antes de cair a temperatura), entramos no mar ouvindo músicas do Bob Marley nos foninhos de ouvido. Naquele momento, não sei por que, o mar já não tinha algas, e a gente pôde ter uma forte sensação de liberdade com a noite, a água, a nudez, a solitude e a música. 
Mas a história ainda não acabou... Voltando a me reunir com a “galera”, depois da minha caminhada matinal, acabamos por ouvir  a segunda frase do Profeta - “Hoje eu trabalho di oito... maix vô di déix”. Assim ele estava querendo dizer que se permitiria chegar atrasado no trabalho aquele dia. Ainda bem que ele estava sossegado com a proposta, pois no final das contas o atraso foi ainda maior do que o previsto.
No retorno para Olinda, de fato, conforme já esperado, faltou gasolina no carro. E a sensação térmica daquele dia, como de todos os outros era daqueles 50 graus. Ficamos, portanto,  cozinhando no carro até que Profeta resolvesse o problema. Nossa sorte é que os Pernambucanos são um povo muito gentil e solidário, então desta forma não tardou muito para um nativo parar e nos ajudar. Jesus subiu na carona da moto do cara para buscar a gasolina. Mais uma vez me senti num filme do Fellini vendo aquela imagem. No fim tudo resolvido. Mas quase não acreditamos quando estávamos chegando novamente no portão da casa de Hilton. Ríamos muito novamente, mas agora também aliviadas e já com muitas histórias para contar para quem estava nos esperando em casa. Eu pude ter a comprovação de que estava mesmo forte, pois muito tempo se passou e a tal gripe nunca me pegou...


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